A devoradora morte - prefácio para o livro de Sandra Ciccone Ginez "O selo da morte"
- Ivan Hegen
- 15 de mar. de 2023
- 4 min de leitura
Marina Colasanti escreveu que Para dizer certas coisas/ são precisas
palavras/ que amanhecem ( “Outras Palavras” em Fino Sangue). Um
desafio que nos cabe aqui é pensar que inusitada manhã trariam as palavras
de Sandra Ciccone Ginez em O selo da morte? Desde o início do poema de
abertura, Sol, a questão não se deixa revelar com nitidez: Que sol é esse/
que se ergue/ ambíguo/ de êxtase e melancolia/ antiluz. Curiosa essa
antiluz, ou Luz para esfriar as cinzas/ que caem pelo abismo, como
arremata Ciccone Ginez ao final do mesmo poema.
Tento coar essa luz ou antiluz no Brasil enquanto os leio em meados
de 2022, época na qual o projeto iluminista agoniza sob uma política de
obscurantismo e morte. A incessante disputa política contamina todas as
sensações e pensamentos, ainda assim entendo que Sandra não pretende
deixar que os inimigos da cultura dominem a recepção de seus versos.
Parece-me justo ater aos poemas da Sandra com um olhar mais sensível,
infenso às grosserias dos que sonharam um governo das trevas. É o próprio
embate político que me incita a buscar palavras que amanhecem, embora,
paradoxalmente, ecoem também estes versos de Salgado Maranhão:
Agora,/ na cidade da tua ausência/ outro dia/ desamanhece.
(“Desamanhacer”, de A cor da Palavra).
Como no filme de Bergman, o livro de Ciccone Ginez se senta
diante da morte em um tabuleiro onde cada movimento pode colocar a
vida em xeque. Versos melancólicos como os do filme sueco, com
indagações sem resposta clara e cenas sombrias em contraste com as de
luz natural. Há jogo de xadrez, e o embate com a morte não se dá na
mente mais do que na carne: as estrelas brilham inversamente/ ao seu
corpo decomposto (“Verão”, O Selo da Morte). Augusto dos Anjos me vem
à lembrança em vários momentos do livro, pelas imagens de putrefação
que se conciliam com uma beleza sombria e insólita: Vida e morte se
encontram/ em um átimo (“Encontro”).
O corpo em caminha lentamente para a morte, aguentando-se
enquanto pode, assim como a poesia resiste à mil vezes vaticinada morte
da arte. A arte cambaleou mas não se deixou enterrar. Tomemos por
exemplo as pinturas de Francis Bacon. Por mais dolorosas que sejam, são
lições de que mesmo naquilo que agoniza há uma intensidade que nos
impele a reconhecer uma vitalidade sobrevivente.
Volto aos poemas de Ciccone Ginez, que após as primeiras
tergiversações me cobram outro percurso. Mais do que um drible na
“morte da poesia”, o que seus versos me sussurram é que as referências à
morte física por vezes se embaralham com sugestões da perda de um
amor, é isso que intuo, cifrado em certas aparições da palavra morte. Nem
sempre é tão diferente o luto que se faz por um corpo sem vida e o luto
vivo pela perda do corpo a corpo com uma pessoa amada. Algo morre,
dentro de nós, quando alguém que ainda respira já não troca mais
conosco a intimidade de seus calores e haustos. Eu mesmo já chamei de
“D.R.s póstumas” a conversas que tive com algumas exs, enquanto
tentávamos elaborar, sem chance de retorno, relações impossíveis de
serem ressuscitadas. Essa fantasmagoria de um amor que se perdeu me
vem à mente quando leio, por exemplo, meu interesse póstumo/ em seu
abdome magro no poema “Terraço”.
Sandra tem muito presente a consciência da finitude, o memento
mori, o desgaste dos dias, a tendência à entropia em todos os corpos e
relações. Em “Retina”, vejo que mesmo quando um envolvimento a dois
está no começo, aqui não se almeja mais do que esperança de sobrevida,
ou seja, de adiamento da deterioração. Até mesmo o beijo que seria de
um primeiro encanto ocorre com prazo de validade: olhei seu sorriso com
datas/de chegada e partida/que beijei.
A morte, seja a morte biológica ou o término de ciclos vitais mais
subjetivos, é, para Ciccone Ginez, uma morte que pulsa, que é ativa,
avança, se move. Há um organismo da morte (em “Organismo”). Não é
uma força estática, e sim devoradora. A morte habita (“Mapa de
Artérias”), ocupa-se de nós com uma inquietude de moradora em plena
posse. Ciccone Ginez não teme o desafio heideggeriano de assumir o ser
humano como ser para a morte. Mais vale uma obra poética com forte
densidade existencial do que versos meramente belos, suaves, os quais
tendem a camuflar as nossas mais incontornáveis fatalidades. A morte se
guia/ pela constelação (“Veleiro”), ou seja, há um rumo, um destino certo,
nessa morte que se move, morte com norte.
Nota-se, contudo, um anseio, próprio da poesia e da arte, de reter
algo, de enfrentar a fatalidade natural. Não é busca que a autora faz sem
calafrios, sem perigos selvagens; como se vê em “Florações”, onde ela
escreve minha floresta/ é gelada como o mármore, para concluir minha
floresta/ é um animal imperecível. Nelson Rodrigues, com sua notável
erotização da morbidez, certamente apreciaria alguns dos momentos
desses lúgubres embates. Imagino uma particular satisfação do autor de
Vestido de Noiva ao ler versos como estes: enciumada do túmulo/ que te
pertence/ metade de mim/quis ficar (“Ficar”)
O corpo da morte é um corpo estranho, que nos atordoa, que só
reconhecemos a contragosto, contrariando nossos desejos. Tememos o
câncer que nos corrói, como a flor maligna de A Espuma dos Dias de Boris
Vian, um romance surreal-existencialista que ecoa nos versos de Sandra
em “Estômago”: No oculto de uma ferida/ que cresce como uma flor
noturna. Em vida queremos negar a morte com a transcendência que
tivermos ao alcance. Não necessariamente a transcendência requer
religião estruturada e hierarquizada, podendo ser uma das vias a da
imaginação poética, que tampouco precisa, para uma assunção particular,
reforçar ideais de pureza ou a separação de corpo e espírito. É o que
constato em versos como os de “Falésias”, em profunda expansão/ dos
pulmões/ grama sol e mar.
Não nos assustemos demasiado, contudo, com O Selo da Morte. Há
um encanto de quem aproxima o celeste ao material, quem coloca nuvem
no chão com “Paixão”. Faz-nos lembrar, por vezes, da expressão petite
mort, que os franceses usam para comparar o orgasmo ao espasmo de fim
de vida. Este livro lúgubre não deixa de vibrar a lição de que só se vive
com intensidade e propriedade quando se tem o limite fatal em vista.
Pode-se ler este livro ao som de “Canto para minha morte” de Raul Seixas,
canção na qual se vê a morte se aproximando vestida de cetim, morte que
se detesta e se ama, morte que talvez seja o segredo dessa vida. Como no
poema “Ele” de Sandra, o convite é para se tornar morte por um dia, e
apreciar a leitura até o último gozo.
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