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A devoradora morte - prefácio para o livro de Sandra Ciccone Ginez "O selo da morte"

Marina Colasanti escreveu que Para dizer certas coisas/ são precisas

palavras/ que amanhecem ( “Outras Palavras” em Fino Sangue). Um

desafio que nos cabe aqui é pensar que inusitada manhã trariam as palavras

de Sandra Ciccone Ginez em O selo da morte? Desde o início do poema de

abertura, Sol, a questão não se deixa revelar com nitidez: Que sol é esse/

que se ergue/ ambíguo/ de êxtase e melancolia/ antiluz. Curiosa essa

antiluz, ou Luz para esfriar as cinzas/ que caem pelo abismo, como

arremata Ciccone Ginez ao final do mesmo poema.

Tento coar essa luz ou antiluz no Brasil enquanto os leio em meados

de 2022, época na qual o projeto iluminista agoniza sob uma política de

obscurantismo e morte. A incessante disputa política contamina todas as

sensações e pensamentos, ainda assim entendo que Sandra não pretende

deixar que os inimigos da cultura dominem a recepção de seus versos.

Parece-me justo ater aos poemas da Sandra com um olhar mais sensível,

infenso às grosserias dos que sonharam um governo das trevas. É o próprio

embate político que me incita a buscar palavras que amanhecem, embora,

paradoxalmente, ecoem também estes versos de Salgado Maranhão:

Agora,/ na cidade da tua ausência/ outro dia/ desamanhece.

(“Desamanhacer”, de A cor da Palavra).

Como no filme de Bergman, o livro de Ciccone Ginez se senta

diante da morte em um tabuleiro onde cada movimento pode colocar a

vida em xeque. Versos melancólicos como os do filme sueco, com

indagações sem resposta clara e cenas sombrias em contraste com as de

luz natural. Há jogo de xadrez, e o embate com a morte não se dá na

mente mais do que na carne: as estrelas brilham inversamente/ ao seu

corpo decomposto (“Verão”, O Selo da Morte). Augusto dos Anjos me vem

à lembrança em vários momentos do livro, pelas imagens de putrefação

que se conciliam com uma beleza sombria e insólita: Vida e morte se

encontram/ em um átimo (“Encontro”).

O corpo em caminha lentamente para a morte, aguentando-se

enquanto pode, assim como a poesia resiste à mil vezes vaticinada morte

da arte. A arte cambaleou mas não se deixou enterrar. Tomemos por

exemplo as pinturas de Francis Bacon. Por mais dolorosas que sejam, são

lições de que mesmo naquilo que agoniza há uma intensidade que nos

impele a reconhecer uma vitalidade sobrevivente.


Volto aos poemas de Ciccone Ginez, que após as primeiras

tergiversações me cobram outro percurso. Mais do que um drible na

“morte da poesia”, o que seus versos me sussurram é que as referências à

morte física por vezes se embaralham com sugestões da perda de um

amor, é isso que intuo, cifrado em certas aparições da palavra morte. Nem

sempre é tão diferente o luto que se faz por um corpo sem vida e o luto

vivo pela perda do corpo a corpo com uma pessoa amada. Algo morre,

dentro de nós, quando alguém que ainda respira já não troca mais

conosco a intimidade de seus calores e haustos. Eu mesmo já chamei de

“D.R.s póstumas” a conversas que tive com algumas exs, enquanto

tentávamos elaborar, sem chance de retorno, relações impossíveis de

serem ressuscitadas. Essa fantasmagoria de um amor que se perdeu me

vem à mente quando leio, por exemplo, meu interesse póstumo/ em seu

abdome magro no poema “Terraço”.

Sandra tem muito presente a consciência da finitude, o memento

mori, o desgaste dos dias, a tendência à entropia em todos os corpos e

relações. Em “Retina”, vejo que mesmo quando um envolvimento a dois

está no começo, aqui não se almeja mais do que esperança de sobrevida,

ou seja, de adiamento da deterioração. Até mesmo o beijo que seria de

um primeiro encanto ocorre com prazo de validade: olhei seu sorriso com

datas/de chegada e partida/que beijei.

A morte, seja a morte biológica ou o término de ciclos vitais mais

subjetivos, é, para Ciccone Ginez, uma morte que pulsa, que é ativa,

avança, se move. Há um organismo da morte (em “Organismo”). Não é

uma força estática, e sim devoradora. A morte habita (“Mapa de

Artérias”), ocupa-se de nós com uma inquietude de moradora em plena

posse. Ciccone Ginez não teme o desafio heideggeriano de assumir o ser

humano como ser para a morte. Mais vale uma obra poética com forte

densidade existencial do que versos meramente belos, suaves, os quais

tendem a camuflar as nossas mais incontornáveis fatalidades. A morte se

guia/ pela constelação (“Veleiro”), ou seja, há um rumo, um destino certo,

nessa morte que se move, morte com norte.

Nota-se, contudo, um anseio, próprio da poesia e da arte, de reter

algo, de enfrentar a fatalidade natural. Não é busca que a autora faz sem

calafrios, sem perigos selvagens; como se vê em “Florações”, onde ela

escreve minha floresta/ é gelada como o mármore, para concluir minha


floresta/ é um animal imperecível. Nelson Rodrigues, com sua notável

erotização da morbidez, certamente apreciaria alguns dos momentos

desses lúgubres embates. Imagino uma particular satisfação do autor de

Vestido de Noiva ao ler versos como estes: enciumada do túmulo/ que te

pertence/ metade de mim/quis ficar (“Ficar”)

O corpo da morte é um corpo estranho, que nos atordoa, que só

reconhecemos a contragosto, contrariando nossos desejos. Tememos o

câncer que nos corrói, como a flor maligna de A Espuma dos Dias de Boris

Vian, um romance surreal-existencialista que ecoa nos versos de Sandra

em “Estômago”: No oculto de uma ferida/ que cresce como uma flor

noturna. Em vida queremos negar a morte com a transcendência que

tivermos ao alcance. Não necessariamente a transcendência requer

religião estruturada e hierarquizada, podendo ser uma das vias a da

imaginação poética, que tampouco precisa, para uma assunção particular,

reforçar ideais de pureza ou a separação de corpo e espírito. É o que

constato em versos como os de “Falésias”, em profunda expansão/ dos

pulmões/ grama sol e mar.

Não nos assustemos demasiado, contudo, com O Selo da Morte. Há

um encanto de quem aproxima o celeste ao material, quem coloca nuvem

no chão com “Paixão”. Faz-nos lembrar, por vezes, da expressão petite

mort, que os franceses usam para comparar o orgasmo ao espasmo de fim

de vida. Este livro lúgubre não deixa de vibrar a lição de que só se vive

com intensidade e propriedade quando se tem o limite fatal em vista.

Pode-se ler este livro ao som de “Canto para minha morte” de Raul Seixas,

canção na qual se vê a morte se aproximando vestida de cetim, morte que

se detesta e se ama, morte que talvez seja o segredo dessa vida. Como no

poema “Ele” de Sandra, o convite é para se tornar morte por um dia, e

apreciar a leitura até o último gozo.

 
 
 

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