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Constrangimento canino

Publicado no site Vício Velho em 05-08-2018


Dificilmente desabafos produzem boa literatura, mas eu não poderia ignorar o gracejo do destino. Na mesma noite em que eu enfrentava a afronta jurídica do Síndico, faiscou no meu celular a mensagem da editora da revista. Coincidência demais para não soar como piada do Supremo Esteta: o tema para o qual sou convidado a colaborar, “Cachorro Louco”, é quase uma demonstração de que, se o Síndico não sabe brincar, os deuses sim, divertem-se muito com as disputas mundanas.

O Síndico de meu prédio, talhado para bancário e frustrado por não chegar a xerife, fatalmente não conseguirá ver beleza alguma, nem no acaso, nem nestas linhas que vou aqui acrescentando às primeiras cartas que lhe enviei. É possível que ele fantasie novos pretextos para novos processos contra mim, mas já não posso recuar, não farei desfeita à sina irrecusável. Ele que tente falar grosso por meio de advogados e regras abstrusas, eu me defendo com meus direitos e por meio de uma linguagem de sintonia mais ampla.

O tema “Cachorro louco”, aliás, ecoa um outro vizinho, décadas atrás, da vila em que passei minha infância. Em vez do edifício de quatro blocos mal arejados, uma pequena vila onde jogávamos bola com outras crianças. Menos com os filhos do “Cachorro Louco”. O apelido caracterizava o mau-encarado que esbravejava contra mulher e filhos. Eu era muito pequeno para poder interferir, tudo o que podia era observar quieto o grandalhão empurrando o casal de filhos para dentro da picape, os pequenos impedidos de brincar ao ar livre.

Cerca de trinta anos depois, cachorro louco reaparece, como se fosse uma carta de tarô recorrente. Paralelamente, há uma troca de cartas bem pouco esotéricas, com ameaças mútuas de processo, mas sem dúvida o destino se faz representado nessa nova tensão entre vizinhos. Essa coincidência do convite para a literatura no mesmo dia em que eu respondia ao tribunal me obriga a arriscar, mesmo ciente de que, no arcano zero do tarô, um cachorro acompanha o Louco, sinalizando mudança, instabilidade e aventura.

Vamos ao caso. Na véspera do Natal passado, recebi de presente uma advertência, onde se destacava um item do regulamento referente a animais domésticos. O artigo em questão prevê uma multa atordoante de R$ 700 para o cachorro que encostar as patas no chão em vez de ser carregado no colo. O ponto mais abusivo é que, em caso de reincidência, a administração se vê no direito de obrigar o morador a se desfazer de seu mascote. Tento imaginar o que isso quer dizer na prática, se ele chamaria a polícia para me arrancar à força minha viralatinha tricolor. Sei que esta regra foi inserida durante os anos Collor no regulamento do condomínio, que, segundo o Síndico, é mais peremptório do que os dez mandamentos.

Eu sendo eu não pude aceitar curvar minha coluna com doze quilos peludos e sacolejantes no colo, descendo e subindo rampas em mais de cem metros doloridos. Inclusive porque esse esforço inútil prejudicaria minhas costas problemáticas. A jurisprudência de que me valho para resistir (tal como citei nas cartas enviadas ao Síndico) se baseia no constrangimento ilegal:

“Art. 146 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, ​ por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda.”

Quem pesquisar encontrará vários ganhos de causa para os donos de cães, afinal nunca se viu nenhuma lei, municipal, estadual ou federal obrigando as pessoas a se vergarem sob o peso de bichos pesados no colo. O intolerante Síndico não quis saber nem da Constituição, que hoje em dia talvez valha menos do que qualquer regulamento de condomínio, e nem do atestado médico que lhe apresentei na esperança de ser poupado. Supostamente haveria uma preocupação com higiene, o que não é muito coerente para um síndico que já foi flagrado descendo com lixo no elevador social, quiçá pingando chorume. Mas o principal, segundo o Síndico, é que regras são regras, apesar de ele, conforme relatos, conceder diversos privilégios para familiares e amigos.

Parece uma discussão menor em tempos de crise aguda da democracia, com militares assanhados, desemprego em alta e incerteza alarmante. Se o tempo é de engolir elefante, por que estou aqui engasgando com mosquito? Existem detalhes irritantes nessa cachorrada, como a exceção feita para alguns moradores, mas o ponto é que não dissocio tanto esta luta das outras. A insistência do Síndico em aplicar uma regra sem cabimento é, a meu ver, dotada de autoritarismo, de negação de uma sociabilidade mais amigável e, tal como vem acontecendo no Brasil, de casuísmo a serviço do poder em vez de justiça como um valor compartilhado. O pior foi ele pedir truco: quer me processar por eu expressar minha crítica à regra absurda.

Não acredito que na percepção de qualquer vizinho meu minha filha de quatro patas seja um cachorro louco ou perigoso. A não ser que compreendam mal sua mania de chorar mansinha, de tanta ansiedade no elevador, antes de sair para passear. Jamais ouvi reclamação alguma contra nossa cachorrinha, jamais alguém explicitou qualquer incômodo, pelo contrário, muitos se afeiçoam por nossa viralata dócil. Ela quase não late, nunca machucou ninguém e é treinada o suficiente para não sujar o espaço comunitário. Nem mesmo o mais implicante dos moradores encontraria um motivo digno de nota para se queixar. E ainda assim, não tem diálogo com o Síndico. Ingenuamente, achei que ele preferiria a minha proposta de trégua por escrito do que enfrentar desgaste na Justiça, mas esta é sempre minha inútil esperança de que os humanos saberão valorizar textos de empatia em vez das palavras da burocracia e do poder.

Talvez seja a carta do Louco, mal embaralhada. É fatal, está nos meus genes, não só uma certa desadaptação em relação aos códigos humanos, como a tendência para amar os animais a ponto de comprar boas brigas. Minha avó paterna, Dona Jane, atingiu alto reconhecimento entre gateiros e cachorreiros, a velha doidinha que cuidava de cerca de mil animais na Praça dos Gatos e na Chácara dos Meus Amores. Em outro momento quero contar suas histórias com mais detalhes, adianto só que uma vez ela deu carteirada em um policial da guarda montada porque o pegou maltratando um cavalo na rua. Foi um caso raro em que uma velhinha da Associação Protetora dos Animais falou mais alto que um policial e arrancou o cavalo dele na hora. O Síndico deveria saber melhor com que linhagem está lidando, e confiar menos que o regulamento do condomínio lhe atribua poderes supraconstitucionais.

Recebi o oficial de justiça com sorriso no rosto, esforçando-me para transmitir o mesmo bom humor que empreguei na carta que supostamente faz de mim um caluniador. O oficial de justiça foi simpático, orientou-me a responder ao Pedido de Explicação através de advogado, em até 48 horas pelo site do TJSP. Ele disse que só passou os olhos pelo processo mas reparou na minha charge, uma cachorrinha triste falando: “700 reais só porque pisei no chão! Por que esse condomínio me detesta tanto?” E ao lado dela, meu autorretrato, com rosto sofrido: “O pior é eu ter que ficar com dores nas costas por causa de uma regra sem sentido.”

Meu recado para o Síndico era que, além de processá-lo, eu poderia espalhar a charge com um breve texto sobre constrangimento ilegal para todos os moradores das quatro torres. Meu erro foi avaliar que bastaria a guerra fria, ou seja, apenas deixar claro para o Síndico que não mexesse nem com o cachorro nem com o Louco. Eu não esperava sofrer um revide tão kafkaniano, mas certamente subestimei o xerife de um prédio que não permite sequer violão na churrasqueira em dia de festa.

A Advogada do Síndico fez um malabarismo enorme na tentativa de me encurralar. Quer criminalizar a minha capacidade de ler, a minha leitura da jurisprudência. Segundo ela, eu não deveria alertar o Síndico de que me multar pela questão canina pode ser considerado constrangimento ilegal, apesar de esse ser o entendimento de vários juízes. A Advogada também se sentiu perturbada com o fato de eu ter assinado minha carta como escritor, porque repetiu essa informação diversas vezes na petição, sempre associando carreira nas letras a dissimulação. Ainda bem que ela é advogada, e não crítica literária. Ela possui uma visão tão peculiar das letras que faz juízo de valor contra uma ferramenta retórica, o silogismo. Segundo a petição, em minha frase “não acredito que o senhor seja mau caráter em tudo que faz”, deve-se deduzir uma calúnia digna de condenação.

Na carta que levou ao processo por calúnia, eu sugiro ao Síndico que leia Hannah Arendt e se informe sobre o conceito de banalidade do mal. Uma pena que isto tenha passado batido para ele e para a Advogada, no Pedido de Explicação não há qualquer referência a essa passagem da minha carta. Eu gostaria sinceramente que o Síndico fosse capaz de absorver minha dica de leitura, que pudesse questionar a obediência irrestrita a regulamentos desumanizados. Eichmann, julgado em Jerusalém por ter transportado judeus para campos de concentração, alegava que apenas cumpria ordens. É claro que isso não colou na opinião pública entre os judeus enfurecidos. O interessante, no entanto, é que a filósofa se nega a ver em Eichmann um perverso, apesar de seu papel desempenhado durante o nazismo. Para Hannah Arendt, as maiores barbaridades da humanidade não requerem uma consciência maligna de todos os participantes ativos. Um enorme contingente de cúmplices não se reconhece como violento, pois muitos se sentem apenas bons cumpridores de ordens. Apenas cumprem com a burocracia, e podem muito bem conduzir judeus para campos de concentração sem requintes de sadismo, apenas obedecendo, burocraticamente, portando-se como homens comuns. Mas de acordo com a filósofa, a “boa consciência” não os exime, não se pode aceitar que burocratas a serviço de desígnios antissociais sigam se justificando impunemente.

Eu até que gostaria, em vez de responder a um Pedido de Explicações intimidador, de sentar com o Síndico em um bar e versar sobre filosofia. É a falta de filosofia e de poesia que o faz me enxergar como um infrator que deveria ser subtraído em setecentos reais ou um cachorro. É a falta de filosofia e de poesia que o faz ver em mim um inimigo a ser combatido em vez de um vizinho com quem chegar a um consenso. Meu enteado é amigo de sua filha, para que tanta desarmonia no espaço que compartilhamos? Por mais banal que seja o caso da cachorrinha, refletir sobre isso é se aprofundar no que temos de humano demasiado humano. O psicanalista Christian Dunker escreveu um livro sobre a vida em condomínio. A respeito de regulamentos, ele diz algo que vem a calhar: “regras extremamente severas e punições draconianas são estabelecidas para pequenos atos infracionais, traço bizarramente idêntico ao que se verifica no interior das prisões. Punição exemplar, punição espetacular.”

Eu gostaria, sim, de conversar desarmado, sem ter que contra-atacar por vias jurídicas, desde que o Síndico abaixasse a guarda. A noção de que o fascismo está dentro de cada um de nós, em mim inclusive, e que por isso precisamos ser democráticos e criativos, proporcionar um ambiente melhor em comunidade. Se ele não entendeu até agora, gostaria que compreendesse como afeta minha dignidade a submissão sem lógica, e que para ele mesmo não é saudável apegar-se tanto ao pequeno poder. Mas não creio que tal conversa terá lugar que não seja na imaginação, por isso vou escrevendo. Afinal só depois de várias cervejas eu ganharia coragem para lhe dirigir as perguntas subjacentes, as que se agitam por trás de nossos conflitos. Por exemplo: se faz parte de suas funções no banco onde trabalha ser inclemente com os endividados que se afundam em juros extorsivos, e, caso assim seja, como ele faz para se dessensibilizar. E outra dúvida, um tanto paranoica porém pertinente. Se acaso o ciclo de crise política atual desembocar em uma ditadura semelhante à de 64, e se, como naquela época, os síndicos forem instados a agir como informantes, o Síndico me denunciará como subversivo (apenas seguindo ordens)?


PS: A primeira versão desse texto chegou à editora no dia 25/07/2018, na hora do almoço. Pela manhã, sem que o autor tomasse conhecimento, um ex-PM era preso sob suspeita de assassinar a vereadora Marielle Franco. Esse homem é conhecido como Cachorro Louco.


 
 
 

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