De volta ao Novo
- Ivan Hegen
- 23 de fev. de 2019
- 9 min de leitura
Publicado no site Cronópios em março de 2009
Uma exposição de artistas jovens no CCBB que estariam apenas apresentados, sem representações, sem pré-julgamentos. Foi esta a idéia de Paulo Venâncio Filho para a curadoria de “Nova arte nova”, muito elogiada em sua passagem no Rio e atualmente em cartaz em São Paulo (até 5 de abril). Com tais premissas, aguardei ansiosamente até que a mostra chegasse à minha cidade para conferir de perto. Dificilmente saio de bom humor de uma grande coletiva, pois sempre há embustes o suficiente para me roubar o ânimo. Desta vez, superando minhas expectativas, gostei tanto que corro o risco de me precipitar e acolher a geração como um todo. A tentação é grande, pois seria tranqüilizadora a sensação de que algo foi superado, de que a arte está evoluindo, ou ao menos de que as novidades são boas. Antes de tecer elogios, no entanto, não posso deixar de considerar duas questões. Uma, que o que ficou de fora singulariza a exposição tanto ou mais do que o que entrou. A outra é que a repetição do adjetivo “nova” no título da mostra deve ser vista com um pouco de malícia.
Para me ajudar a pensar no que ficou de fora, o acaso fez com que eu chegasse ao CCBB no momento em que um grupo de ativistas do Greenpeace colhia contribuições. Eram tantos que me fizeram relativizar a velha história de que os jovens de hoje são acomodados, de que não têm grandes sonhos ou motivações políticas depois que os pais derrubaram a ditadura. Não é bem assim. Também eu, como a maioria dos artistas da exposição, cresci nos anos 80, década de Xuxa e do auge da cultura yuppie, mas isso era a infância. Bastou atingirmos a idade adulta para sentir o quanto o neoliberalismo é excludente: não há quem não tenha um parente ou amigo próximo que, por mais bem preparado que seja, não consegue manter um emprego e prolongar a vida lúdica. Não bastasse a instabilidade financeira que ameaça até altos executivos, a crise ambiental deixou de ser preocupação de minoria alarmista para assumir a proporção de um pesadelo cada vez mais assustador. Os voluntários do Greenpeace à porta do CCBB indicam que, por mais que o sonho tenha morrido com John Lennon, muita gente está desperta e age na tessitura da realidade. Refletindo sobre utopias artísticas, fiquei feliz ao ver que a atuação direta estava nas portas de fora, e não dentro do espaço expositivo.
Ficou de fora de “Nova arte nova” uma das marcas da geração atual, a proliferação dos coletivos. Não há um único coletivo representado no CCBB, ninguém que se denomine “artivista”. Talvez seja isso que diferencie a exposição, mais do que qualquer outra coisa. Ainda que alguns grupos como o Poro e o Coringa possam nos instigar, a imensa maioria dos coletivos de artistas engajados tem provocado mais estridência do que música, não por desencanto, mas por falta de orientação. A confusão sobre o papel do artista na sociedade remete à época de Bob Dylan, dos estudantes de Sorbonne e das lutas contra a ditadura. Nos anos sessenta, o artista plástico não resistiu ao chamado das ruas e também quis confrontar as gerações anteriores. O que se passou nas artes plásticas, no entanto, deve ser visto à parte do que se passou no cinema, na música ou na literatura. As artes plásticas foram radicais no início do século XX, com as vanguardas históricas rompendo convenções e propondo novos comportamentos, numa prévia do que veríamos na contracultura. Décadas depois, no momento em que grandes músicos distorciam a guitarra, o cinema novo fraturava o tempo e a literatura se provava rebelde, os artistas plásticos se voltaram justamente contra uma geração que ajudou a propagar tal euforia. O conflito de gerações dos minimalistas e neodadaístas foi auto-referente, preferindo contrariar seus pais espirituais, os primeiros vanguardistas, do que, digamos, os pais biológicos. Foucault pode ter lhes servido para dar um verniz contemporâneo, mas o que denominaram crítica institucional se mostrou uma falácia. Picasso, Matisse, Kandinsky e Miró foram rejeitados apenas porque passaram a ser aceitos pelo mercado, mas também seus opositores, de Maciunas a Hans Haacke, logo passaram a ser. O que poucos consideram é que os estudantes da Sorbonne e os hippies de San Francisco também levaram algo da arte para o espaço da vida, como pregam os artivistas, mas só saíram do mero discurso ao atuar à margem do sistema de galerias, sem reivindicar nada de críticos ou curadores. Tal ressalva aos anti-modernos foi bem argumentada na época pelo crítico Harold Rosenberg, mas não lhe deram muita atenção. Tanto não o ouviram que, cinqüenta anos depois, os coletivos continuam ignorando o quanto é mais potente a atuação política fora do circuito, sem que para isso seja necessário assassinar a boa e velha arte.
Tenho simpatia pelo Greenpeace, que teve entre seus fundadores integrantes do PROVOS, um coletivo de Amsterdam muito influenciado pelos primeiros modernistas e que antecipou os movimentos de San Francisco. Eles realizaram happenings contra o cigarro e espalharam bicicletas brancas pela cidade como alternativa ao tráfego automobilístico. Hoje é muito comum que ações nessa toada ingressem o espaço expositivo, em substituição às mídias mais contemplativas. Chamam-nos de “artivistas” e consideram-nos a verdadeira vanguarda. Nenhum deles jamais teve a adesão dos jovens que os PROVOS tiveram, nenhum deles pôde transformar a cidade como os holandeses fizeram, flexibilizando as leis e propagando uma mentalidade menos hierárquica. Os primeiros PROVOS poderiam, se quisessem, reivindicar um lugar destacado na História da Arte, mas só foram decisivos ao não confundir ativismo com artivismo. Fizeram-no com tanta consciência que seu passo seguinte não se deu na galeria, mas no Greenpeace. É provável que aqueles militantes em frente ao CCBB não conheçam a história toda, mas eles sentem que bastaria reivindicar o rótulo de artista para perder a credibilidade.
Outro problema é que a inserção do ativismo em uma exposição artística, ao mesmo tempo que neutraliza seu impacto social, neutraliza também o vigor da arte autônoma. Não encontrei em “Nova arte nova” muitas obras que corroam a autonomia da arte. Tornou-se rara uma exposição assim, pois não só o artivismo, como toda defesa de uma equivalência entre espaço da vida e espaço da arte tende a desmanchar o campo ilusório, a romper a relação de alteridade. O minimalismo dos anos sessenta, por exemplo, foi instigante em alguns aspectos, mas ao se tornar regra viciou o olhar, fez com que toda obra servisse apenas como índice de um contexto engolidor. Não é exatamente isso que acontece em “Seção Diagonal”, de um sucessor do minimalismo presente na exposição, Marcius Galan. O artista opera na arquitetura com poucos elementos, mas o vidro que divide o espaço do chão ao teto não ativa todo o entorno, não tenta transfigurar o prédio inteiro em obra de arte. Contenta-se com um pequeno nicho, uma reentrância na parede, e a esse pequeno espaço, com a ajuda da iluminação, confere uma dimensão outra. A transparência liga espaço da obra e espaço da vida, mas como coisas distintas, inter-relacionando-se, mas sem atingir a dissolução. Uma artista que vem sabendo manter-se no limiar é Lia Chaia. Ela pintou nas paredes canos dourados que dialogam com a estrutura do prédio, porém evitou a literalidade. Se ela simplesmente instalasse canos reais ou pintasse de dourado peças que já estivessem no local, não faria mais do que design ou decoração, por mais que pudesse agradar quem ainda segue o anti-ilusionismo.
Já se vê que o “novo” dessa mostra não é exatamente um passo à frente. A essa altura, insistir num crescendo nos levaria ao estiramento, como ficou patente nas ações de Pixabomb e no vazio da Bienal. Em vez da busca incessante pela destruição do velho, que foi se revelando empobrecedora tanto na lógica consumista quanto na comunista, o que nos interessa são saídas em ziguezague. Fica mais claro que boas obras não se prendem a uma temporalidade só, nem sequer à “contemporânea”. “Proto-tide”, vídeo de Thiago Rocha Pitta, por exemplo, tem um embate tão antigo quanto a própria poesia: a água contra o fogo. No entanto, ele mostra as ondas beijando o braseiro em ritmo tão sereno que a paisagem noturna ecoa, para quem souber ver, paisagens internas onde o fugaz e o atemporal se tangem. O crepitar da chama só é possível de se ouvir com algum silêncio, sem ataques frontais à arte, sem as vaias contra a estética e contra a subjetividade que prosperaram na antiarte. Não é nova a obra de Rocha Pitta, mas é rejuvenescedora. Tampouco parecem novas as pinturas de Marcelo Solá, que lembram muito Cy Twombly, mas pode-se ver que ele tem garra, que não está apenas prosseguindo mecanicamente em fórmulas aceitas. Não é tão simples, aliás, limpar a mente de cinqüenta anos de discurso anti-pintura antes de se sujar com as tintas, e quem o consegue merece algum crédito. Por sua vez, Vânia Mignone e Alice Shintani me pareciam duas das maiores apostas nessa linguagem mas, a despeito de seu potencial, sofrem hesitações e recuos. Vimos acontecer nos anos 80, década de “retorno à pintura” e talvez ainda tenhamos artistas intimidados por um discurso oficial que não legitima a pintura como se deve.
O respeito ao ilusionismo não é revigorante apenas para quem pinta, mas para qualquer um que pense em arte. Não se trata de apego à tradição, mas da compreensão de algumas condições de existência. Tomemos o caso de duas Marianas, a Palma e a Manhães, que estão dispostas na mesma sala. Mariana Palma é, sem dúvida, uma de nossas pintoras mais habilidosas, exibindo uma obra madura, onde cores e formas ganham as telas com grande vivacidade. Mariana Manhães envereda por tecnologias mais recentes, desenvolvendo engenhocas mecânicas que sincronizam movimento, vídeo e som. Os sons da máquina invadem os ouvidos assim que entramos na sala, lembrando balbucios de um bebê, numa língua inventada pela própria artista. Curioso é que há muitas maneiras sutis de se aniquilar o ilusionismo, mas, nesse caso, nem o estardalhaço sonoro da engenhoca tem por destino abafar a voz das pinturas ao lado. Se entendermos por que, temos uma chave para debates que atravessaram gerações. Olhando para a obra, “Liquescente”, penso se tratar da apresentação de uma obra autônoma, como se esta tivesse vida própria, o que se confirma pela subordinação dos movimentos (corpo) a imagem e sons que vêm do vídeo (mente). O crucial é que, por mais que a obra se valha da verdade dos materiais, deixando aparente seu processo de construção, com cabos, motor, madeira e todos os parafusos à vista, ainda se conserva no espaço da alteridade. A obra é não é domesticada, não se entrega facilmente ao nosso espaço, pois também ela vive. Manhães diz não se interessar muito por arte interativa e considerar fundamental que suas engenhocas não se mostrem servis ao espectador. A relação quem efetua é o espectador, de maneira não muito diferente de como faz com a pintura, aproximando-se psicologicamente daquilo que observa. Não é, portanto, sequer o uso de materiais do cotidiano que rompe a dialética entre espaço da vida e espaço da arte. As duas Marianas, tanto a pintora quanto a experimental, evitam o que se buscou nas últimas décadas, que seria o momento sintético, finalista, onde espaço da vida e espaço da arte se confluiriam em um todo inconsútil. Preferem manter o diálogo em aberto, onde os devires prosseguem sob tensão constante - o que, diga-se de passagem, torna a experiência muito mais rica.
Não é causal, portanto, que o curador dessa exposição seja um admirador confesso de pintura, em especial de Iberê Camargo. Por mais que ele diga que a nova geração recorra basicamente aos deslocamentos, suas escolhas apontam para poéticas que preservam a arte como alteridade. É o que se constata não apenas nas pinturas, mas em praticamente todas as mídias que ocupam o prédio. Mesmo uma intervenção urbana, se for lúdica o bastante, não se subsume ao cotidiano, como se vê na performance de Romano. È próprio da poesia o estranhamento causado em suas perambulações por São Paulo, com um auto-falante nas costas a repetir “Não preste atenção”. Também a arte conceitual, que foi das mais corrosivas nas últimas décadas, pode se distanciar da antiarte ao se desprender do didatismo – como nos quadrinhos de Carlos Contente, uma entrevista bem-humorada com uma cor, o Verde. Importa agora não ser leviano, como se tem sido há décadas, com o limite para o que interessa ser chamado de arte. Lygia Clark, por exemplo, percebeu que ultrapassava esse limite, não é à toa que deixou de querer ser vista como artista. O que Lygia fez nos seus últimos anos talvez fosse até mais interessante do que arte, porém levou-a a sentir que não cabiam em uma exposição de arte. Já era um outro âmbito, o da pesquisa terapêutica. Não sugiro que os coletivos de artivistas se dissolvam, mas que compreendam qual o espaço em que colaboram para um mundo mais criativo. Parece-me viável que contribuições da arte para o artivismo se dêem de diversas maneiras e com gererosidade, mas não com a partilha do mesmo espaço. “Novo”, embora antiqüíssimo, seria notar que arte e artivismo não ocupam o mesmo espaço mental, pois não cabem quando justapostos. Trata-se de condição de existência, de pressupostos da percepção, que só se resolve renunciando ao desejo simplista de fusão. Espero que cada vez mais os artivistas percebam por si mesmos, sem a interferência de um curador ou de um crítico, a impossibilidade cognitiva de que arte ilusionista e artivismo coexistam sem um mínimo de diferenciação. A “novidade” não é nada que os militantes do Greenpeace, do PROVOS, ou qualquer um que compreenda o legado de Seattlle-99 não tenha assimilado.Há ações que são mais potentes quando percebidas no espaço da vida, e outras que só podem existir como sua alteridade.
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