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Dois Ivans no front

Publicado na Revista Gueto Especial Política em janeiro de 2019


Em 2013, quando a política nacional começou a se agitar de maneira inesperada, nada estava mais distante dos meus planos do que me filiar a um partido. Muito menos trabalhar no mandato de um deputado federal, como eu viria a fazer três anos depois, com meu xará Ivan Valente, do PSOL. Pelo contrário. Eu simpatizava com ideias anarquistas sem acreditar muito no êxito de uma sociedade anarquista, tinha uma referência forte no Nietzsche que talvez fosse mais estética do que ética, me interessava por Deleuze sem me definir deleuziano, e minha principal atuação política até então foram performances anticapitalistas com terroristas poéticos. Para resumir, nessa época convites lúdicos para provocações contra o sistema me seduziam, mas nem cogitava compromisso partidário.

Naquele junho, participei do principal ato do Passe Livre, singrando a Faria Lima, mesmo achando que os vinte centavos sobre a tarifa do ônibus eram uma causa de baixa importância. O que me tirou de casa foi a necessidade de dar uma resposta à repressão policial sob comando do Alckmin, além da sensação de que aquele momento seria um divisor de águas. E sem dúvida foi um momento histórico, mas, assustadoramente, as forças da direita não tardariam a se apropriar de pautas que em sua origem estavam à esquerda. O anárquico MPL teve o mérito de aquecer a micropolítica e com isso estimular uma explosão de lutas identitárias, mas não pôde evitar o surgimento do fascistoide MBL, sua corruptela.

Não se trata de condenar as Jornadas de Junho, mas de nos perguntar como elas foram distorcidas pela direita. Ocupar as ruas em um país geralmente tão despolitizado como o nosso pode gerar mais associações com o carnaval do que com uma luta consistente, e ao que parece muita gente dos bairros nobres andou lado a lado com ativistas de esquerda como se fosse apenas uma festa. Em tese, deveria haver ali sensibilidade social o bastante para se solidarizar com o impacto de meros R$ 10,00 mensais para a classe trabalhadora, mas os que evitaram questionar seu próprio estrato social preferiram sustentar a ideia esdrúxula de que só existe luta de classes porque, nas últimas décadas, a esquerda “inventou” de dividir o Brasil. Tão ou mais lamentável é lembrar que a faísca que inflamou os manifestantes supostamente foi com a repressão policial nos primeiros protestos, mas grande parte dos que apoiaram o Passe Livre logo estaria gritando “Viva a PM” em comício do Aécio, apenas um ano depois. Realmente não era só pelos vinte centavos, mas a falta de cerimônia com que direitistas subiram no nosso ônibus para em seguida dominar o volante até hoje assombra.

Ainda naqueles primeiros atos do Passe Livre, houve um dia em que as bandeiras e camisetas de partidos de esquerda foram violentamente rechaçadas. Muito militante experiente entendeu logo a mudança no clima e deixou de engrossar os atos seguintes, eu ainda iria fazer uma última tentativa. Com o palco quente, outras manifestações pegaram carona, uma delas contra a PEC 37, a proposta que visava coibir poder de investigação do Ministério Público Federal. A princípio poderia ter sido uma causa de interesse comum a qualquer brasileiro empenhado no combate à corrupção, e resolvi ir à Paulista para sondar o ambiente. Não aguentei ficar mais de cinco minutos. As faixas, camisetas e coro dos manifestantes indicavam que, ainda naquele mesmo mês de junho, era o antipetismo que ia substituindo as bandeiras de esquerda expulsas das ruas à força. O gigante acordou com sede de sangue.

Do MPL ao MBL, o sucesso na reorientação de rota encorajou a uma infinidade de outras inversões de discurso, que se refletirá mais tarde no impeachment de Dilma e na eleição do Bolsonaro. Deflagrada a guerra ideológica, houve um grande investimento até convencer muita gente de que o verdadeiro racismo estaria em ações afirmativas, de que o ultraliberalismo seria vantajoso para os pobres, de que discutir ideologia de gênero seria doutrinação, e de que os autoritários seriam os partidos de esquerda, eximindo até mesmo quem tece elogios ao principal torturador da ditadura militar. Esse caldo alimentaria o ódio cuidadosamente gestado contra qualquer ideia progressista, no intuito final de vender a ideia de que Estado mínimo e conservadorismo nos costumes são soluções contra todos os males, especialmente a corrupção.

Nos anos seguintes, o acirramento dos ânimos contaria com a devoção a Sérgio Moro, a paixão breve por Aécio Neves, o entusiasmo com Eduardo Cunha e o ódio visceral a Lula. Nesse ínterim, meu mestrado em Teoria Literária me fez sentir a necessidade de ler bons pensadores marxistas, e eu só poderia enxergar a situação nas ruas e no Congresso como luta de classes. Meus posts e artigos em sites refletiam espanto com a enorme falta de sentido em se tirar Dilma para deixar Temer no lugar: um dos meus textos alertava que isto seria trocar seis por 666. Outro, de 2016, já previa uma ascensão perigosa de Bolsonaro, apesar de eu avaliar que suas chances reais viriam em 2022 ou 2026, após acumular força.

Nas passeatas “Fora Dilma”, muita gente que ainda não se enxergava como bolsonarista minimizava os pedidos de intervenção militar que se espalhavam pelas avenidas, como se o apelo ao autoritarismo fosse meramente residual, como se o caráter predominante da onda antipetista fosse democrático. É claro que boa parte já agia com cinismo puro e simples, mas também havia muita gente incapaz de estabelecer conexões entre o legado cultural escravocrata, as cicatrizes da ditadura e nossa situação recente. Para bom leitor estava claro que os interesses eram outros e foi muito aflitivo notar que a multidão de verde e amarelo estava disposta a atropelar os votos de milhões, inclusive de amigos e conhecidos, sem uma justificativa coerente, enterrando qualquer ilusão sobre a cordialidade brasileira. Eu me sentia tão atordoado com as notícias diárias de uma imprensa que mais parecia uma máquina de instilar ódio que não suportei mais ficar observando, e numa data próxima do impeachment me “alistei” no exército do Ivan Valente. Quem fez a ponte foi o filho do deputado, meu amigo de velhos tempos, Rodrigo, que transmitiu ao mandato que eu escrevia bem e tinha uma postura política compatível.

Cheguei a um escritório simples, espaçoso mas sem luxo algum, onde até a mesa de reuniões sinaliza mais a simplicidade de um educador do que a ostentação de uma figura de poder. Quem primeiro me recebeu foi o Marcelo, braço direito do Valente, que acabava de ter uma bebê e, mesmo perdendo o sono de madrugada para os cuidados paternais, se mostraria sempre um lutador incansável e bem disposto. Logo entendi que, para trabalhar na comunicação do mandato, mesmo assumindo uma tarefa de grande responsabilidade, eu receberia a mesma quantia que vinha recebendo como tradutor freelance. Definitivamente, ali a política não é atividade para enriquecimento, e isso se nota pelos carros de toda a assessoria: até mesmo o do Marcelo, que cuida também da tesouraria, está aquém do que a classe média consumista considera razoável. O próprio deputado se contenta com um carro bem modesto e deixa bastante claro que as prioridades são outras. O Valente até me pediu desculpas por pagar tão pouco, mas tinha muita gente para carregar nas costas, e contava com um espírito de militância para que nos empenhássemos, mesmo sem a motivação mais mundana.

Mesmo trabalhando muito para ganhar pouco, trabalhar no mandato nesse período foi ótimo para manter a sanidade, ajudando com os pronunciamentos do deputado na Câmara, criando material para o Facebook e marcando presença na luta contra o conservadorismo. No meio de toda aquela crise eu não vinha conseguindo me concentrar em nada que não fosse política diretamente na veia. Enquanto quase todos meus amigos lamentavam ter que aguentar o bullying dos “coxinhas” em seus ambientes de trabalho, eu tinha as conversas mais instigantes com a equipe de comunicação (Fabiano, Vini e Márcio, um verdadeiro privilégio trabalhar com vocês), recebia conselhos e conhecimentos jurídicos do Doutor Alberto, ouvia as histórias de capoeirista do Mestre Del, as velhas histórias de operário sedutor do Miguel, admirava as lutas por moradia do Anselmo, e, uma das experiências que mais fazem falta à maioria dos brasileiros, eu convivia com um feminismo ao mesmo tempo forte e terno, com a Lu, a Claudinha, a Sylvie e a Renata. Em um outro momento posso contar melhor as histórias que vivi com esse povo de luta, com todos que conheci na militância, mas já dá para imaginar que era um ambiente de trabalho bem diferente de uma empresa convencional. As análises de conjuntura do Valente e as visitas ocasionais de Boulos e Freixo enriqueciam tanto a minha visão de mundo que compensavam as dificuldades. O dia a dia era pesado mas também divertido – a equipe de comunicação tinha uma criatividade infinita para criar piadas, fossem de teor político ou nem tanto.

Difícil avaliar se nosso assunto mais recorrente eram as atuações do Valente e do PSOL, se as movimentações dos políticos da direita ou preocupações com o PT. Tudo isso era sempre pensado junto. Algo que não procede, contudo, é supor que o PSOL seja um “puxadinho do PT”, como dizem muitos adversários. Se fosse puxadinho, não haveria uma atuação firme do PSOL na CPI da Petrobras, tentando enfrentar operação-abafa tanto de tucanos quanto de petistas. E se fosse puxadinho, o PSOL também não teria feito o pedido de cassação contra Eduardo Cunha. O ex-presidente da Câmara, que Glauber Braga chamou de gangster, colocou o pedido de Dilma em pauta como retaliação quando ficou encurralado. Aliás os petistas mais fanáticos se inflam de ódio contra o PSOL por não ter mostrado um alinhamento subserviente ao PT. Mas se não fosse a independência comprovada, que outra força política organizada teria moral para mostrar que ser contra o impeachment de Dilma era uma saída ética, inclusive coerente para quem luta de verdade contra a corrupção?

As recentes revelações sobre o clã Bolsonaro nos deixam ainda mais seguros sobre aquilo que já sabíamos mas que nem sempre se evidencia com clareza. Por mais que possa haver descontentamento com governos petistas, não se pode tomar PT como sinônimo de corrupção, mesmo porque um dos maiores equívocos que se comete no Brasil é supor que a destruição do petismo conduz à moralidade. Não se confunda Moro com moral. A máscara do juiz já vinha se desgastando, e caiu de uma vez quando ele aceitou fazer parte de um governo que se elegeu com uso de caixa 2. Moro estará em um governo que já se inicia com ao menos nove ministros enrolados com a Justiça, batendo o recorde anterior, de Temer (sete ministros). Quanto ao escândalo da COAF, podemos dizer de consciência tranquila que o conjunto de indícios que pesa contra os Bolsonaros, onde se incluem transferências bancárias, já é bem mais comprometedor do que o demonstrado na controversa e frágil sentença contra Lula.

Na TV e nos jornais, as pessoas encontram imagens de Ivan Valente, de Erundina e Boulos em São Bernardo em ato de solidariedade ao ex-presidente metalúrgico. Eu também estava por ali naquele dia melancólico. Sei do quanto eles se emocionaram, mas sei também do quanto tiveram que superar profundas mágoas e reservas para subir com Lula no palanque, principalmente os dois deputados da velha guarda. Apoiaram um condenado que, se para muitos é o grande mártir de nossos tempos, para outros é uma espécie de encarnação do mal. Esse gesto cobrou um certo preço político dos psolistas, nem todos seus eleitores habituais compreenderam. Erundina e Valente fizeram o que sentiram ser o mais justo em uma situação delicada, em suas consciências o compromisso humanitário superou o cálculo eleitoral, e agiram com tanto acerto que depois a ONU viria dar respaldo. Teria sido bem melhor que não atingíssemos esse ponto de tensão, bastando que, na opinião pública, a corrupção fosse discutida com maior complexidade, com maior amplitude e com maior isenção.

A MP 795, por exemplo. Uma das minhas tarefas mais marcantes como assessor parlamentar foi ter ajudado o deputado na elaboração de um pronunciamento sobre a chamada MP do Trilhão. A medida foi pouco divulgada no Brasil, tivemos que contar mais uma vez com a imprensa internacional para expor nossa condição de eterna colônia. The Guardian revelou informações obtidas pelo Greenpeace sobre o lobby de petroleiras britânicas, entre elas a Shell, para afrouxar leis de tributação, licenciamento e exigência de conteúdo nacional. O resultado foi a edição de uma medida provisória que levaria a perdas na arrecadação estimadas em um trilhão de reais ao longo de sua vigência, até 2040. Fizemos nossa parte, alertamos na tribuna e nas redes sociais, mesmo assim a alteração foi aprovada, esvaziando de sentido o suposto patriotismo dos deputados que derrubaram Dilma. Em uma canetada, o Congresso e “MiShell” subtraíram dos cofres públicos um valor dezenas de vezes superior ao do petrolão, sem expectativa de retorno condizente com o montante cedido a estrangeiros. É escandaloso que isso não tenha escandalizado a grande imprensa brasileira.

Está difundida a percepção, correta, de que há todo um sistema de poder prejudicando a população, mas não é tão simples perceber como funciona o modelo ultraliberal e como enfrentá-lo. O trabalhador que pega pesado no batente mal tem tempo e energia sobrando para se informar sobre política, e quando o faz acaba recorrendo a telejornais de viés liberal, ou a figuras como os pastores de sua igreja, isso quando não consome fake news sem checar. A esquerda tem de insistir na disputa de narrativa, lembrando que algumas vitórias pontuais nos indicam um caminho a trilhar. Por exemplo, o êxito da campanha contra a Reforma da Previdência, levando Temer a desistir de sua principal promessa para o mercado financeiro, valeu cada gota de suor. Bolsonaro já anunciou que tentará fazer o que Temer não conseguiu, mas sem dúvida enfrentará enorme resistência e um considerável desgaste em sua popularidade. Para sermos francos, também foi a concessão à agenda ultraliberal que esvaziou o apoio a Dilma em 2015. Uma grande ironia, pois ela adotou o programa econômico do candidato derrotado para acalmar a fúria de um mercado impossível de contentar, e o resultado só poderia mesmo ter sido um desastre.

Por mais danosas que tenham sido as inconsistências do PT, é o governo Temer que sai pela porta dos fundos com recorde negativo de aprovação. Essa marca se deve à acentuação do programa ultraliberal com Temer, mas, em alguma medida, também devido a um forte trabalho de comunicação da esquerda. Nossa esperança era que, predominando a consciência de que o impeachment piorou o Brasil, o voto seguinte pudesse recolocar o Brasil no campo progressista - e quem sabe até com maior coerência ideológica, após o fracasso da política de conciliação. Algo desse tipo poderia acontecer se houvesse maior normalidade institucional – especialmente, se o candidato à frente das pesquisas pudesse concorrer, ou então, se a Justiça tivesse agido com maior agilidade e contudência contra as fake news. Abertas as urnas, a única boa notícia, do meu ponto de vista, foi o crescimento do PSOL, mas a correlação de forças que se desenha com a vitória do fascismo brasileiro não é animadora.

É de se lamentar profundamente que Bolsonaro tenha pautado a disputa pelos costumes, evocando preconceitos e fobias que impossibilitaram qualquer discussão séria de projetos. Havia outros candidatos de direita no páreo, alguns até mesmo com imagem associada a honestidade, mas o vencedor foi o que mais radicalizou contra tudo que há de progressista. Neste cenário, prever que será um péssimo governo não é mais precipitado que a previsão anterior, sobre a piora que viria com o impeachment, antes mesmo que este fosse votado. Enxergando bem o tabuleiro, sabe-se com lances de antecedência que não se elegeu um projeto de nação, muito menos em benefício do povo. Não há espaço para otimismo, mas sabe-se que a História tem suas surpresas e reviravoltas. A esquerda terá novamente um imprescindível papel de resistência, esclarecimento e luta, ciente de uma conjuntura de maior agressividade e provavelmente até de perseguição política. Um trabalho urgente é o de reconquistar mentes e corações, e para isso teremos de reverter a inversão de pautas. Se essa onda autoritária começou com o sequestro dos protestos por Passe Livre, será preciso encontrar meios para recolocar na ordem do dia o estado democrático de direito, a soberania popular, o combate à desigualdade e a valorização do conhecimento e da cultura. Para quem sonha com um mundo justo a luta não termina nunca.

 
 
 

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