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Entrevista para agência A4

1 – Os contos do livro A lâmina que fere Chronos são todos autobiográficos?


Como eu digo em História em Três Dimensões, "não se deve jamais acreditar muito em um escritor. Ou melhor, não acreditem demais em ninguém e duvidem um tanto de si mesmos." A terceira dimensão da história seria a que salta para o além-página, para os bastidores, para a realidade do autor, mas isso sempre vai se misturando com a fantasia. Nos últimos anos, me interessei muito pela relação entre arte e vida, a princípio como questão teórica, depois como experimentação pessoal. Se prestarmos atenção, veremos que ficcionalizamos a maior parte de nossas vidas e nas informações que recebemos diariamente há ainda mais invenção. Não busco a indistinção completa, mas uma tensão ou um diálogo entre arte e vida que creio permear o livro todo, às vezes de maneira conflituosa, outras com humor ou erotismo.

2 – Nota-se uma escrita livre de censura, e com reflexões profundas não raro psicológicas, em que o enredo pode ficar em segundo plano nas histórias. Em sua formação como escritor, há inspiração nos escritores beatniks?

Quanto a reflexões psicológicas, para mim foi uma questão de sobrevivência mental ter uma compreensão de psicanálise desde muito cedo, porque meus pais são dessa área e vamos dizer que eles levavam trabalho para casa. Por mais apavorante que seja esse sistema de pensamento, pode nos ajudar a superar algumas repressões e autocensuras. Os beats tinham uma proposta clara de libertar a mente, muitas vezes com a ajuda de drogas, e em alguns momentos (talvez mais evidentes em Burroughs) o que lemos é mais um delírio da linguagem em busca de uma liberdade do que uma narrativa tradicional. Tanto as técnicas quanto os temas dos beats me interessam bastante, não apenas de Burroughs, Ginsberg e Kerouac, como o de diversos escritores que foram inspirados por eles. Eu não desprezo o plano das histórias, gosto de narrativas e trabalho a ação, mas acho que um bom livro deve ter algo que não seja possível reproduzir num filme ou num programa de TV.

3- A crítica irônica ao “caos” provocado pelo capitalismo é evidente em seu trabalho (outra qualidade dos beatniks). No conto “Terroristas poéticos”, o “Dia do Mendigo” proposta na história dá forma à sua inquietação frente ao retrato descarado da desigualdade social vista no Brasil?


Este é um conto que eu posso dizer sem maiores problemas que é 100% autobiográfico, porque quase ninguém vai acreditar. Difícil me conhecer de perto e imaginar que eu criei um protesto tão inusitado quanto o que narrei. Eu me interessei muito por terrorismo poético uns anos atrás, era minha gana de levar a arte para além do discurso e intervir na vida das pessoas, estivessem elas preparadas ou não. Para contrapor ao caos do capitalismo, que se disfarça de ordem, os terroristas poéticos impõem uma ruptura, uma manifestação de CAOS tão anárquica que não caberia em qualquer categoria institucionalizável de arte.

4- Na atual “modernidade líquida” em que vivemos, há valores sendo revistos dentro da sociedade. Perde-se muitas vezes substância, e até mesmo as relações passam a ser mais superficiais. Você colocou vários desses elementos em críticas à arte contemporânea, discutindo o fato de uma obra artística ser tomada hoje segundo as leis do mercado. Em que isso vai dar, na sua opinião (Perde-se o que)?

Arte para mim é ruptura, é algo que provoca um corte no tempo cotidiano, uma interrupção significativa das atividades rotineiras. Por mais que hoje se queira uma arte comedida, bem mais retórica do que propositiva, acho que algo do espírito de vanguarda poderia ser resgatado. Eu me formei em Artes Plásticas e no mestrado resolvi comparar o pensamento crítico contemporâneo nas artes plásticas e na literatura, a partir de "Água Viva" da Clarice Lispector. Se eu valorizo o romance da Clarice é porque acho que ainda há espaço para algum lirismo, desde que não seja muito inocente, desde que não nos alienemos. Nas artes plásticas é mais complicado porque a grana é descomunal e às vezes embaça o olhar: nós queremos ver uma boa pintura, mas são tantos os cifrões que fica difícil enxergar a obra. O "antidoto" maniqueista tem sido ainda pior, algo como uma espetacularização do engajamento em que não encontro sinceridade política, apenas uma esperteza na competição por mercado. Ainda não sei no que vai dar, mas venho me perguntando se a literatura poderá dar algumas respostas às artes plásticas.

5- Quais são suas principais influências literárias?

No mundo das palavras eu digo que sou filho da Clarice com o Nietzsche. Herança maldita, que não me permite muita tranquilidade. Entre irmãos, primos, tios e outros parentes, também vale a pena mencionar Hilda Hilst, Caio Fernando Abreu, Paul Auster, Nabokov, Rubem Fonseca, Sartre, Guimarâes Rosa, Fernando Pessoa, Lacan, Ferreira Gullar, Guy Debord, Godard, Fellini, Thurston Moore, Frank Zappa, Picasso e Rauschenberg. No entanto, uma boa conversa com um amigo num boteco pode ser mais importante para o desenvolvimento de uma obra que todo esse repertório.


 
 
 

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