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Harold Rosenberg diante da morte da arte

Publicado na revista Ciência e Vida Filosofia n. 34


Geralmente, associa-se o nome de Harold Rosenberg à action painting, termo cunhado por ele para designar a pintura norte-americana dos anos 40. O que ele escreveu a esse respeito, no entanto, é apenas uma parcela de sua contribuição, e não a mais significativa. É lamentável que nas décadas subseqüentes, em meio a um debate intelectual que se polarizou entre o modernismo de Greenberg e seus opositores pós-modernos, não tenha havido grande espaço para um pensador que não se deixava levar por nenhuma das posições demarcadas. Rosenberg, um crítico de espírito independente, recusava generalizações e ideologias, o que fez com que ele, apesar de muito lido, tenha sido pouco decisivo como influência para o que se produziu. Devemos levar em conta que o momento era de Guerra Fria e de conflito de gerações, e o combate na intelligentsia reproduzia antagonismos semelhantes.

Mesmo que partamos daquilo que Rosenberg revela sobre a action painting, já notamos que ele não poderia se encaixar na bipolarização que se seguiu entre seus colegas. Greenberg marcou a posição mais formalista, admirando o expressionismo abstrato devido ao rompimento com o ilusionismo, compreendendo a pintura como autonomia das cores, das formas e das texturas. Privilegiou as obras que refletiam a planaridade da tela, empregando termos como “pureza” e defendendo o fim do “tema literário” na arte visual. Rosenberg, olhando para as mesmas obras, as exalta menos pelos aspectos formais do que pela ênfase na ação. “A tela começa a afigurar-se como uma arena na qual se age”, ele escreve em Os action painters norte-americanos. “O que se destinava às telas não era um quadro, mas um acontecimento”. Em artistas como Pollock, Hofmann e De Kooning, Rosenberg não encontra a arte reduzida a si mesma em sua máxima pureza, mas, pelo contrário, uma radical aproximação entre arte e vida. Nesse aspecto, ele se assemelharia aos críticos que reagiram arduamente contra o formalismo de Greenberg, já que a principal ressalva contra este era a separação brusca entre arte e cotidiano. Contudo, foi com acurácia ainda maior que Rosenberg analisou o quanto havia de artificialidade nas dissoluções da arte na vida menos bem-sucedidas que se celebrariam depois da action painting.

Há muitos empregos para o termo pós-moderno, podendo, por exemplo, designar a guinada em direção ao conceito, que ganhou força nos anos 60, ou a arte de pastiche que se consolida nos anos 80. Creio que a arte contemporânea é melhor descrita pelo pós-modernismo em seu primeiro sentido, onde se assume uma intencional reação à arte moderna e, em especial, a toda arte caracterizada pelas proposições de Greenberg. Não é à toa que o filósofo Habermas[1] entende o pós-modernismo como um anti-modernismo, inclinando-se inevitavelmente para a morte da arte. Assim como em Habermas, o que diferencia Harold Rosenberg dos demais opositores de Greenberg é a clareza com que ele percebeu que a arte moderna significava muito mais do que a estética pura. Sem perder o tônus político, expunha a descrença de que uma refutação radical dos princípios da arte moderna pudesse ser vantajosa. Naquele momento, mais do que em qualquer outro, a filosofia e a ideologia foram decisivas para os rumos que a arte tomava. Pensadores marxistas, entre eles Giulio Carlo Argan, acreditavam que a arte deveria flertar com sua morte para resistir à saturação de imagens promovida pela indústria cultural. Outros, nem tão politizados, como Arthur Danto, viam a morte da arte como a assertiva de que arte sempre fora antes de mais nada conceito, e que como tal deveria ser trabalhada. E os artistas mais românticos, como Joseph Beuys, entendiam a morte da arte como sua completa dissolução no cotidiano, eliminando qualquer fissura entre arte e vida. Rosenberg participava do debate de maneira mais pontual e mais sutil. Tal como os pensadores citados, procurava algo mais do que a estética, indagando-se quanto à legitimidade da arte em um mundo dominado pela lógica da mercadoria, e tinha na action painting um exemplo de fusão entre arte e vida. No entanto, estava ciente de que a arte como uma espécie de “contraconceito ao kitsch” seria igualmente kitsch, o que o possibilitava ver muitas ressalvas nas manifestações de anti-arte.

Distinguia-se dos pós-modernos por não entender a morte da arte com a mesma peremptoriedade, apesar de se manter consciente de que era inevitável enfrentá-la como questão. A posição de Rosenberg fica mais clara na sua definição da obra de arte como um “objeto ansioso”. “‘Sou uma obra-prima’, assim deve perguntar-se o objeto, ‘ou uma montanha de sucata?’”, posto que, muitas vezes, poderia ser ambas ao mesmo tempo. Para ele, a arte deveria transitar entre a anti-arte e a beleza, entre a revolução e a nostalgia, entre a realidade e a falsificação estética, no entanto tal jogo só interessa enquanto se mantiver no limiar. As melhores obras da action painting não se contentavam em ser apenas pintura, caso em que seriam meramente decorativas. Tampouco poderiam se tornar ação pura, pois assim a arte desapareceria. Conforme as obras dos artistas foram se inclinando mais explicitamente para o campo da vida, a ponto de eliminarem praticamente qualquer característica que as remetesse ao que se possa chamar de arte, Rosenberg passou a contestar a indulgência excessiva de seus colegas. Seu tom não era conservador, alisando caso a caso e buscando ver até que ponto as propostas poderiam suscitar interesse. “O aplauso indiscriminado e a rigidez dos valores são atitudes igualmente hipócritas”, ele dirá em O objeto ansioso.

Os problemas decisivos vêm à tona a partir da Pop Art. Andy Warhol nada mais fez que deslocar uma caixa de sabão em pó do supermercado para a galeria de arte para que um produto banal adquirisse status de arte. Rosenberg vê no gesto de deslocamento a principal inovação da Pop Art, no entanto exprime ao longo de diversos ensaios um intenso questionamento a respeito do valor do novo. Ele considera que o frescor da novidade amplia a consciência e a sensibilidade, exigindo considerações que ultrapassam o terreno da estética. Anima-se com os debates que as obras experimentais obrigam aos críticos, no entanto crê que toda novidade tenha seu prazo de validade. A maior parte das idéias da Pop Art, na sua opinião, teriam se esgotado em cerca de dois anos, ao passo que uma obra como Mademoiselles de Avignon, por exemplo, possui qualidades que permanecem mesmo quando perde o frescor da novidade. Além disso, a maior parte do que se celebrava como novo poderia sê-lo para uma parcela do público, mas não para um crítico capaz de remeter todo o repertório vigente às primeiras décadas do século XX. Notando o quanto a ânsia pelo novo se confundia com febre consumista, ele vê o público vanguardista como um dos maiores problemas da arte de nosso tempo. A tradição do novo já não precisava ser defendida como uma bandeira, não era necessário se sentir embaraçado diante de uma tradicional pintura de paisagem ou acreditar que os contemporâneos estivessem sempre em evolução. O eterno retorno pode ser mais promissor do que o progresso. Muitas vezes Rosenberg lembra o pensamento de Nietzsche, onde posições contraditórias coabitam e se revezam, cético quanto à existência de uma trajetória linear da História, assim como de qualquer Verdade inequívoca. Costuma tecer descrições muito precisas dos fenômenos da arte, desobrigando-se a concluir com uma simples aprovação ou desaprovação, o que denota maior honestidade intelectual do que a busca por uma escala de valores restritiva. Não hesitou, por exemplo, ao dizer que a “superficialidade congênita” marcava a Pop Art, nem por isso deixou de investigar seus bons momentos.

“Morte à arte”?

No entanto, é mais precisamente na dinâmica entre arte e anti-arte que Rosenberg deveria ser visto como pensador incontornável. Ao passo que muitos dos principais críticos de seu tempo deixaram a desejar quanto à inteligência lógica, Rosenberg percebia paradoxos que, por maior que seja o desejo de libertar a arte da razão instrumental, incorrem em má-fé quando desprezados. A começar pela figura do artista. Com o artifício do deslocamento, um objeto qualquer não precisa mais do que a declaração de um artista para se converter em arte, no entanto o que faz de alguém um artista até hoje não vem sendo discutido propriamente. Para Rosenberg, um artista é determinado pela criação de arte, mas o pós-modernismo, ao lidar basicamente com essências, assegura que a auto-declaração é o suficiente. O problema é que, em tempos de anti-arte, quando o objeto de arte é combatido, pouco resta além da figura do artista. Em A Tradição de novo, Rosenberg deixa claro seu descontentamento com tamanha tautologia: “A arte revolucionária é uma contradição. Ela declara que a Arte é Arte enquanto é contrária à Arte, e em seguida tenta firmar-se como a mais sólida espécie de arte”[2].

O fato era que cada vez mais o olho se tornava incapaz de separar um objeto de arte de um objeto qualquer sem recorrer ao discurso e ao contexto profissional. As obras se remetiam mais à história do modernismo e a outras obras contemporâneas do que à percepção sensorial, a despeito do que se perdia em termos de experiência. Com isso, consolidava-se um novo academicismo, na pior acepção da palavra. Paradoxalmente, esse academicismo era avesso à estética, no entanto com tamanha auto-consciência que a estética tornava-se uma obsessão, entendida por Rosenberg como um tabu. Exemplo disto se nota em Robert Morris, que enviou um documento para seus expositores decretando que a partir de então suas esculturas não possuiriam qualquer valor estético. O documento em si viria a ser percebido como obra de arte. Somente em um contexto extremamente especializado se pode pretender que um texto em anexo possa retirar ou atribuir valor estético a um objeto, ou que esta declaração pudesse interessar à contemplação. Rosenberg não se deixa enganar: o gesto de Morris pressupõe arte, por mais que se declare avesso a sua tradição. Muitos artistas declaravam querer aniquilar a arte em favor da realidade, e para isso deslocavam a natureza para o espaço de exposição – apresentando areia, gravetos, rochas ou cavalos como ready-mades, cinqüenta anos depois de Duchamp. No entanto, a “coisa real” jamais pode deixar de ser arte em um contexto que pressuponha sua consciência histórica. Apesar de se fazerem passar por “arte do real”, tais expressões se afastam terminantemente do espaço da vida, ao requisitar o discurso como intermediário. Não tendo sequer a novidade como trunfo, como no caso de Duchamp, tais obras só podem ser arte “como excrescência de teoria”[3].

Até que ponto os artistas estavam sendo revolucionários se torna ainda mais duvidoso depois do Maio de 68 francês. Rosenberg se entusiasma com as expressões coletivas de resistência, vendo nelas algo semelhante ao sonho surrealista de se levar a poesia para as ruas. As frases que os jovens inscreviam nos muros atacavam em especial a cultura de massas e o comportamento conformista: “Sabotem a indústria cultural”, “Seu chefe precisa de você, você não precisa dele”, “A imaginação no poder”, entre outras. Ao cobrirem os muros, os estudantes aliavam expressionismo e despersonalização, valendo-se de uma consciência artística que muitas vezes incluía o dadaísmo e a anti-arte. O solo epistemológico demarcado por décadas de anti-arte permitia ver a Revolução de Maio como um happening, ou, tal, como disse Michel Ragon, um balé entre estudantes e policiais, onde finalmente a arte se conjugaria com a realidade. Mais do que isso, os levantes deixavam claro que a tão proclamada convergência entre arte e política poderia se realizar com um imediatismo que passasse ao largo de qualquer anseio por um reconhecimento oficial. Os cartazes da Sorbonne tinham impacto ao sacrificarem o artesanato e o estilo em favor de símbolos óbvios, tais como caveiras nos capacetes dos policiais; contudo, se o radicalismo e o engajamento fossem a medida, nada do que os anti-artistas tenham feito poderia se comparar com o que se concretizou em Paris. Rosenberg leva isso em conta ao afirmar que, a partir daí, o lema “Morte à arte” se tornaria uma farsa quando não descartasse todas as manifestações expressivas em lugar de confrontos diretos, como o dos estudantes. Tal como Sócrates, o que ele fez com esse raciocíonio foi evidenciar uma aporia.

Neste episódio, Michel Ragon foi mais extremista do que Rosenberg, sugerindo anarquicamente que todas as vanguardas artísticas se encerrassem e assumissem a potência do confronto. Já Rosenberg não rejeita a arte, entendendo que boa parte da poesia da rebelião se devia ao repertório cultural de cada estudante, sendo este um argumento para a permanência da arte. No entanto, ele enxerga com a mesma lucidez de Ragon que o devir da anti-arte só poderia ter sua conclusão na confrontação, e converte a convocatória do colega em um apelo para que os artistas redefinissem suas premissas. Depois de 68, estava provado que a fusão entre arte e cotidiano se realizava com maior sinceridade fora do círculo artístico do que em seu interior. Porém, se em 74, Joseph Beuys brada com convicção que “A arte é agora o único poder evolucionário-revolucionário”, e se em 2006 a Bienal de São Paulo foi apelidada, não sem motivos, de Bienong (sendo a subsequente Bienal do Vazio sua conseqüência lógica), está claro que Rosenberg não foi compreendido a tempo. Foi um dos críticos mais lidos e um dos mais respeitados, nem por isso um dos mais influentes. Muitos de seus argumentos seriam de dificílima refutação por parte dos críticos mais marcantes do período, no entanto não foi capaz de lhes mudar o pensamento. É preciso entender por quê.

Confrontação

Em primeiro lugar, há o aspecto econômico. Greenberg tem seu nome associado à geração de Pollock, Rosalind Krauss aos pós-modernos e o próprio Rosenberg aos action painters porque ajudaram a impulsionar suas carreiras. Contudo, Rosenberg não se entusiasmou com o que viu surgir nos anos 60, que foram, na sua opinião, uma década de programas estilísticos e de auto-crítica da arte, mas não de obras-primas. Estando suas opiniões afastadas do jogo mercadológico, não pôde ser mais do que uma voz isolada, incapaz de influir decisivamente. Quanto aos demais críticos, Rosenberg entendia que operavam uma espécie de compensação histórica. Estando ainda vivo o fantasma da rejeição aos radicais – como os impressionistas, Van Gogh e Duchamp, que só tardiamente obtiveram reconhecimento –, muitos aceitavam toda novidade sem uma reflexão fundamentada. Tal atitude tinha a boa consciência a seu favor, fazia com que o crítico parecesse arrojado e progressista. Percebendo o quanto a aceitação incondicional do novo é comodista, Rosenberg desdenha do que chama de opiniões da geração, não reconhecendo nestas muito mais do que modismo. o, vendo em suas opiniço de umaha a mentalidade dominante de uma geraçao das de campo expandido e Rosenberg pelos action paintNão é de todo gratuito, portanto, que acusa seus colegas de “embusteiros profissionais”. É evidente que declarações como essa não o tornavam especialmente simpático por parte de seus contemporâneos, o que também deve ter contribuído para seu isolamento. Contudo, ele não poderia ter herdado de Nietzsche apenas o espírito contestador sem um tanto de sua virulência.

Também era nietzscheana sua convicção de que todo artista que se submete demais à crítica não passa de um medíocre – ecoando o mesmo “Seja homem e não siga a mim” do filósofo alemão. A action painting lhe parecia o último momento de seriedade na arte, exatamente porque então o temperamento falava mais alto do que qualquer regra. Aqui chegamos a uma discrepância mais propriamente ideológica entre Rosenberg e seus colegas. A maioria dos críticos se dividia entre formalistas como Greenberg, que se recusavam a enxergar qualquer influência social sobre a história da arte, e os marxistas, que reduziam a arte a suas relações com o mercado, com a mídia e com as superestruturas. Rosenberg não poderia se encaixar em nenhum dos dois grupos, embora pudesse se alimentar de ambos. Seu interesse por questões políticas era evidente, a ponto de discorrer, mesmo antes de 68, sobre momentos ideais em que a revolução seria uma dança, uma fusão entre os ritmos locais e mundiais. No entanto, sua posição sempre fora semelhante à que se consagrou na Sorbonne efervescente: a revolta não poderia ser controlada, não se poderia admitir um Partido como controle sobre os insurgentes. A seu ver, os críticos de arte fiéis a um marxismo mais ortodoxo reproduziam em seu pensamento a autoridade de membros de um Partido, restringindo as possibilidades tanto para o espectador de arte quanto para os criadores. Rosenberg jamais pensou que o engajamento político fosse uma obrigação para os artistas, menos ainda que revolução cultural e revolução social tivessem necessariamente que coincidir. Pelo contrário, entendia arte como uma manifestação de independência do espírito.

A patrulha ideológica era intensa, mas Rosenberg não aceitava fórmulas fáceis. Seu estudo de marxismo lhe permitia uma visão crítica em relação ao mercado e à alienação, porém não o tornava um finalista. Na sua opinião, a interferência da sociologia na arte deveria se restringir ao estudo das influências do público sobre os artistas, ou de que modo um ethos e um momento histórico interferem no processo de criação, no entanto jamais na cobrança por uma resposta específica da arte à Sociedade. “Uma sociedade que não possua indivíduos independentes, mas onde as pessoas passivas são manipuladas pelo ambiente, dificilmente mereceria ser chamada de uma sociedade humana”[4]. Os marxistas tradicionais não acreditavam que pudesse haver “indivíduos independentes” em um mundo capitalista, e inapelavelmente adiavam o momento em que a arte voltaria a ser autônoma. Escandalizados com a inevitável cooptação dos modernistas por parte da indústria cultural, exigiam que a arte fosse sempre uma resposta a esta dinâmica. Consequentemente, viam nos procedimentos da anti-arte um antídoto contra a transformação de arte em mercadoria – por mais que não tenha demorado muito para que a própria anti-arte fosse igualmente cobiçado pelos colecionadores.

Para Rosenberg, arte deveria ser uma atividade onde a dignidade do indivíduo estivesse assegurada, sendo que somente em um regime totalitário poderia deixar de existir uma vanguarda livre. A afirmação de liberdade modernista não é necessariamente egóica, porém prenhe de desejos e devires que não teriam lugar em um mundo onde a subjetividade tivesse que ser regulada por um Partido. Constata, portanto, que o regime soviético não exagerou ao ver na arte moderna uma ameaça à sua consolidação. Ao recusar qualquer teleologia, Rosenberg chega a uma exigência ainda maior sobre a ética de um artista do que seus colegas puderam atinar. Ele parte do fato de que, a arte comercial e a arte de propaganda do realismo soviético, gostemos ou não, ainda é arte. “Kitsch é a cultura cotidiana de nossa época, como o vaso ou o hino o foram de gerações anteriores”[5]. Se, portanto, não é a “declaração” que injeta consciência artística em um objeto, mas se alguma consciência já estava presente no designer que o concebeu, os processos de anti-arte estavam, apesar de toda a retórica engajada, igualando grande arte aos meios de comunicação. É o que acontece quando se considera arte “qualquer invenção ao qual o público é sensível”. Qualquer distinção entre arte e kitsch, nesse caso, só poderia valer para quem tivesse uma concepção demasiadamente moral e mítica do mundo, em que o artista fosse um representante de ideais incontestáveis, sacralizando aquilo que na mão dos designers seria lixo. Rosenberg não se deixaria levar por tamanha ingenuidade, simplesmente por não possuir uma visão mítica da figura do artista. Preferiu entender como mero design uma arte onde não se vê mais do que conceitos emprestados ou uso de novos materiais. A saída proposta para Rosenberg é semelhante à de Nietzsche: não se pode estabelecer valores universais, a moral é sempre relativa e sujeita a interesses particulares. É a constatação dessa tragicidade que nos leva a sentir o quanto a vida só tem valor enquanto houver arte. O artista criador confirma sua potência nos embates, mas só é livre se mantiver independência tanto em relação à crítica quanto aos movimentos, tanto em relação às ideologias quanto à expectativa do público.

Talvez estejamos chegando a um momento mais propício para a releitura da obra de Rosenberg. Diante do esgotamento do que foi proposto nas últimas décadas, evidente, por exemplo, no vazio da última Bienal, é oportuno considerar que certos abusos teriam sido evitados se o melhor do pensamento de Rosenberg já fizesse parte dos debates em artes plásticas. O sentimento de que há algo nos paradigmas pós-modernos que merecem contestação vem se alastrando no meio, ainda que uma das maiores dificuldades seja encontrar por onde começar tal revisão. Neste momento, Rosenberg é um ilustre desconhecido, que poderá causar boas surpresas a quem se detiver em sua obra com maior atenção. Em sintonia ou em confronto com ele, é imprescindível resgatar seu legado, pois os desafios nos quais ele se lançou são dos mais urgentes para se pensar a arte atual.

Bibliografia

ARGAN, Giulio Carlo. A arte moderna, Companhia das Letras

ARGAN, Giulio Carlo. Arte e crítica de arte, Editorial Estampa.

DANTO, Arthur. Após o fim da arte, Edusp.

FERREIRA, Glória (organizadora). Clement Greenberg e o debate crítico, Jorge Zahar Editor.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Martins Fontes.

FRASCINA, Francis, HARRIS, Jonathan, HARRISON, Charles e WOOD, Paul. Modernismo em disputa. Cosac & Naify.

KRAUSS, Rosalind, The originality of avant-garde ant other modernist myths. MIT Press

HARRISON, Charles e WOOD, Paul (organizadores). Art in theory, 1900-2000. John Wiley & Sons

HABERMAS, Jürgen. “Modernity – an incomplete project” in: Post-modern culture (organizado por Hal Foster), Pluto Press

LUCIE-SMITH, Edward. Movements in art since 1945. World of art

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Companhia das letras

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Companhia das letras

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Companhia das letras

ROSENBERG, Harold. A tradição do novo, Editora Perspectiva.

ROSENBERG, Harold. Objeto ansioso. Cosac & Naify

ROSENBERG, Harold. The de-definition of art. The University of Chicogo Press.

ROSENBERG, Harold. Act and Actor, The University of Chicogo Press.

ROSENBERG, Harold. Art on the edge, The University of Chicogo Press.

[1] “Modernity – an incomplete project” in: Post-modern culture.


[2] Revolução e o conceito de beleza, em A tradição do novo.


[3] Art and words, em: The De-definition of art.


[4] Prefácio de The De-definition of art.


[5] Cultura pop: a crítica kitsch

 
 
 

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