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Os curadores da Bienal 2010

Entrevista com Agnaldo Farias e Moacir do Anjos publicada na DASArtes ago-2010


Chegando à sua 29ª edição, a Bienal de Artes de São Paulo dava o que falar antes mesmo de sabermos se aconteceria. Devido a crises políticas internas e ao déficit financeiro legado pela última edição, cogitou-se adiá-la ou mesmo cancelá-la. Sob nova diretoria, encabeçada por Heitor Martins, os curadores-chefes Moacir dos Anjos e Agnaldo Farias assumiram o desafio e planejaram uma Bienal com amplo espaço de discussão, adotando como tema a relação entre arte e política. Garantida sua periodicidade, uma das maiores surpresas foi o anúncio de que haveria a participação dos pichadores que invadiram e atacaram o pavilhão em 2008, dessa vez como convidados. Em entrevista com os curadores, no entanto, notamos que esta é somente uma das questões que prometem tornar esta uma das edições da Bienal mais comentadas dos últimos tempos.

A Fundação Bienal passou por momentos de turbulência, com déficit financeiro e crise política interna. Cogitou-se cancelá-la ou adiá-la. Como foi que os obstáculos foram superados tão rapidamente?

Moacir- Isso se deve, principalmente ao fato de a nova diretoria que assumiu, com Heitor Martins à frente, ter tomado para si a responsabilidade de dar continuidade à Bienal. Adiar a Bienal para 2011 ou 2012, embora fosse mais sensato do ponto de vista de qualquer gestor naquele momento, traria um prejuízo muito grande à credibilidade da Bienal. Embora cercado de dúvidas, de desconfianças, rapidamente ele mostrou que era factível e graças ao empenho da diretoria, houve adesão quase imediata de varios setores da sociedade, em nível federal, estadual e do setor privado. Demonstrou-se uma vontade muito grande de afirmar a instituição, pela importância que ela tem.

Esta é uma Bienal atípica, entre outros motivos, pela designação de dois curadores-gerais. Como foi, para vocês, trabalhar em dupla?

Agnaldo - Trabalhar com o Moacir é um privilégio. Nada é feito sem conversar, tudo é decidido junto. Eu jamais faria algo dessa escala sozinho, é muito difícil, são muitos elementos com que lidar em pouco tempo. Prefiro essa complementariedade. Eu só trabalho com quem eu gosto, então é preciso estar com quem você tem um entendimento muito grande. Também o acompanhamento de toda a equipe foi muito importante [há mais cinco curadores convidadados]. É uma equipe muito rápida, que não só materializa o que nós pensamos, como incrementa nossas ideias.

A proposta curatorial se concentra na relação entre arte e política. Vocês poderiam ser um pouco mais especificos quanto a visão de política que têm em mente, e a relação desta para com a arte?

Moacir – No meu entender, qualquer ato, qualquer gesto, qualquer fala que abra uma determinada brecha na compreensão de mundo é uma manifestação política. Não importa a plataforma - uma performance, uma manifestação na rua ou na internet - se nos toca de uma maneira diferente, é um gesto político. A arte faz isso o tempo todo. A arte afeta nossos sentidos e muitas vezes nos coloca no mundo de uma maneira ímpar, que não se confunde com nenhum outro campo. É nesse sentido que a gente aposta na potência de transformação da arte. Achamos importante enfatizar uma relação da arte com a política que não se reduz à de uma mera propagadora de uma ideia, de uma ideologia, de um entendimento do mundo gerado em outra parte. Mesmo quando não tematiza conflitos, a arte é capaz de nos tocar de uma maneira que muda nosso entendimento do mundo, muda nosso estar-no-mundo.

Agnaldo - Toda a arte é política, afinal o homem é um ser político. Em um mundo essencialmente pragmático, com uma noção de técnica que deprecia a própria ideia de técnica, em um mundo burocrático, as ciências humanas ficam de lado, sobretudo a arte. É esse equívoco que está nos levando para o abismo. Os artistas não são apenas os que revelam, são os que fundam. São os poetas e escritores que nos dão as palavras, que as expandem, que as criam. Por isso que é uma Bienal presidida pela poesia, por isso que citamos o Jorge de Lima, “Há sempre um copo de mar para um homem navegar”, e não uma categoria teórica. As categorias nascem e tomam como fonte os artistas. É estratégico e fundamental mostrar para o mundo a precedência da arte. Lembrar ao mundo que Velasquez não leu Foucault; Foucault é que viu Velasquez. As pessoas não se deram conta disso, por isso acham que arte é um adorno, um acessório.

Houve um aumento expressivo no número de artistas nacionais selecionados, além do emprego de conceitos que se pautam pela brasilidade, como o dos terreiros. Seria exagerado dizer que a Bienal deste ano tem como uma de suas missões refletir o bom momento economico do Brasil?

Moacir – O Brasil é um país enorme com uma produção de arte moderna e contemporânea riquíssima, reconhecida internacionalmente, pelo menos nos últimos vinte anos. Então é natural que tenha uma quantidade grande de brasileiros na Bienal, inclusive porque há uma curiosidade internacional. Mas, é claro, essa curiosidade só aumenta com o fato de o Brasil ter um protagonismo cada vez maior na política. Não só lá fora, mas entre nós mesmos. Acho que nós ainda não nos conhecemos plenamente, ou não nos conhecemos mais.

Agnaldo – A Bienal deste ano tem dinheiro porque o Brasil tem dinheiro. É a história da internacionalização. Esta edição terá muitos artistas brasileiros porque existem muitos artistas brasileiros bons, e eles são reconhecidos mundialmente. Inclusive os curadores internacionais foram os que mais sugeriram a presença deles nesta Bienal.

Vocês poderiam falar um pouco sobre os “terreiros”?

Moacir – Os terreiros se dividem em seis núcleos, cada um com uma questão específica e voltada para uma linguagem artistíca. Um deles é Longe daqui, aqui mesmo, uma biblioteca criada por Marilà Dardot e Fábio Morais, um lugar onde tudo cabe, onde tudo é inventado, ligada à ideia de utopia e distopia. Criado por Carlos Teixeira, temos O Outro, O mesmo, dedicado a performances, à música, à dança, à poesia, e a uma série de ações relacionadas ao corpo e à voz. Temos mais dois terreiros dedicados à fala em práticas mais discursivas: um deles chamado Dito, Não Dito, Interdito, pelo artista Roberto Loeb e pelo grafiteiro Kboco; o outro é Eu sou a Rua, planejado por UN Studio. Um terreiro dedicado a filmes é A Pele do Invísivel, desenvolvido por Tobias Putrih. Por fim, Lembrança e Esquecimento, de autoria de Ernesto Neto, será um espaço para descanso, aludindo à capacidade de rememoração.

Agnaldo – O terreiro é a utilização de uma categoria presente na cultura brasileira. O terreiro está todo lugar, está no morro, então foi uma grande sacada. Se é uma Bienal no Brasil, temos que falar a partir do Brasil. O Brasil é um espaço em construção, pois tem 200 milhões de habitantes, mas quantos ainda estão na faixa de miséria e não têm acesso ao que é absolutamente essencial? Ainda mais porque o sistema educativo não valoriza, não contempla a arte. O projeto pedagógico não ser acessório. Muito pelo contrário. A Bienal é eminentemente educativa, e é por que faz exposição.

Moacir - A Bienal não é só a exposição. Tem um projeto educativo gigantesco, fundamental, um projeto editorial também grande, além de uma interface digital. Tudo com uma dimensão muito grande e tudo interligado, cada um desses setores.

Tem-se falado muito da presença dos pichadores nessa edição da Bienal como convidados. Falou-se em reparação simbólica, em prevenção de novos ataques, em demagogia, em cooptação, etc. Como vocês reagem a essas críticas?

Agnaldo - Veja, o pichador vai entrar com documentação, porque nós não somos idiotas e os pichadores igualmente não são idiotas. Se a gente desse uma parede branca para eles picharem seria ridículo. Eles mesmos disseram que não pretendem mais pichar o prédio, porque já fizeram isso. Mas, como se trata de arte e política, eles perguntaram se haveria espaço para discutirem o que estão fazendo nas ruas. Então tem documentação do trabalho deles, que é interessante. Vídeos, fotos e tags (assinaturas). Eles mesmos costumam fazer esses vídeos e os vendem. Fizemos cópias fotográficas das tags e preenchemos as paredes. Se é arte ou não é arte é completamente irrelevante. Pode ser curioso fazer aproximações desse tipo, por que não?

Alguns apontariam para o problema da ilegalidade. Como vocês veem os embates entre a arte e a lei instituída?

Agnaldo - Essa coisa do vandalismo, né? O Gordon Matta-Clark deu um tiro contra os vidros do Intituto de Arquitetura e Urbanismo de Nova York. E colocar bigode na Mona Lisa é vandalismo? É. De certo modo, é. Agora, vamos discutir o que está sendo discutido. Teremos telas da Marlene Dumas retratando a militância terrorista de Baader-Meinhoff e Hélio Oiticica com Seja Marginal, seja heroi. Então, em alguns momentos há essa passagem do artista para o terrorista.

Rosenberg sugere em o “Objeto ansioso” que uma obra de arte sempre nos leva a indagar se ela é uma obra-prima ou um monte de lixo. Você crê que seja esta a postura ideal para o visitante da exposição?

Agnaldo - Para mim, não é que o objeto peça um olhar ansioso, somos nós que temos um olhar muito ansioso em relação a tudo que a gente não conhece. Queremos aplacar essa ansiedade, resolver essa ansiedade mediante explicações. E a explicação não quer dizer nada, aí é que a gente se engana. Igual o nome de alguém. Se você me diz que é o Ivan, posso dizer que conheço o Ivan? Não, eu fui apresentado, não o conheço. Em nossa sociedade, conhecemos todo mundo de vista e achamos que conhecemos. O objeto de arte é aquele que diz: “E aí, e você?” Ele não se auto-apresenta. Você tem que ficar lá parado, e na verdade tentando se perceber no próprio objeto. O objeto artistíco cria em você uma ansiedade que não será aplacada, porque é um objeto irresoluto.

Apesar de ter seus momentos de maior agressividade, como no caso dos pichadores ou das referências a Baader Meinhof, há espaço nesta Bienal para as mais diversas opiniões políticas, estéticas, e até mesmo religiosas. Esta Bienal busca uma espécie de consenso?

Agnaldo - Nós aqui não estamos idolatrando ninguém. Não acho que dá para chegar em um consenso, mas dá para conversar. Temos que aprender que a política é conversar, é trocar. A política não são os políticos; é a conversa, é a tentativa de se chegar em um consenso. O consenso é possível? Não sei, mas temos que tentar. Há momentos de muito baixo astral nessa bienal. E outros de alto astral. De alegria. Assis Valente, que compôs Iluminai nossos terreiros, era escravo. Um ex-escravo que fala “salve o prazer” entende que o prazer e a alegria são fundamentais como resistência. Quer mais sofrido que o negro no Brasil? E nós temos uma certa alegria. É curioso.

Moacir – O que pretendemos é mobilizar tudo que existe dentro de você em relação à propria capacidade de perceber o mundo. Desacelerar para se portar de maneira diferente. Aquela coisa: ninguém ensina, mas alguns aprendem.

 
 
 

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